Há momentos na política internacional em que o gesto mais banal pode carregar o peso de mil cadáveres — ou melhor, de milhões. Um aperto de mão, por exemplo, pode parecer apenas um protocolo. Mas há mãos que não se apertam impunemente. Há mãos que, quando tocadas, exalam o cheiro de pólvora, luto, sangue, guerra, morte e autoritarismo. E há fotos que, mesmo em silêncio, gritam mais do que qualquer discurso histriônico.
Na última semana, Luiz Inácio Lula da Silva apertou a mão de Vladimir Putin durante uma visita oficial à Rússia. Na recepção ao presidente brasileiro, Putin, como sempre, exibia no rosto um gesto calmo, paciente — dir-se-ia até benevolente. Muitos sorrisos, tapinhas nos ombros, imensa cordialidade diplomática e um lugar de honra — muita honra — em um desfile militar. Nos assentos reservados aos convidados especiais, onde se sentou Lula, estavam também líderes de regimes autoritários.
Ao observar as imagens, mesmo sem saber o que pensava o presidente naquele momento, é possível notar que ele parecia confortável ao lado de Umaro Sissoco Embaló (Guiné-Bissau), acusado de governar com mão de ferro, dissolver o Parlamento e adiar eleições; Ibrahim Traoré (Burkina Faso), citado pela Human Rights Watch como repressor da imprensa e da oposição; Denis Sassou Nguesso (Congo), que governa há décadas sem alternância e é acusado de perseguição política; Emmerson Mnangagwa (Zimbábue), sucessor de Mugabe e, para muitos, ainda mais autoritário. E, claro, a cereja do bolo: Vladimir Putin.
Putin não é um chefe de Estado em tempos de paz. O mundo sabe — e não é necessário que este colunista o explique — que ele é acusado de crimes de guerra, de invadir um país soberano, destruir cidades inteiras, bombardear hospitais, perseguir opositores e assassinar dissidentes. O Tribunal Penal Internacional, inclusive, já emitiu um mandado de prisão contra ele. Ainda assim, o Brasil sorri e estende a mão. Talvez porque a diplomacia, como tantas vezes se repete, não tem moral — tem interesses. Mas até onde pode ir o interesse sem que se transforme em cumplicidade?
Escrevo agora, às 22h48, e não consigo evitar lembrar-me de uma imagem que percorreu o mundo no início da guerra na Ucrânia: pai, esposa e filhos mortos enquanto tentavam fugir dos ataques; ao lado dos corpos cobertos, o único sobrevivente era o cachorro da família.
Lula — como tantos outros antes dele — acredita que a neutralidade é uma virtude. Mas há neutralidades que matam. Ao sentar-se entre ditadores, ao posar para fotos ao lado de um presidente em guerra, ao silenciar enquanto civis morrem sob bombas russas, o Brasil perde sua voz no concerto moral do mundo. Ser neutro diante do horror é, muitas vezes, apenas uma forma elegante de ser conivente.
Não se trata de exigir inocência geopolítica. Não existe pureza nas relações internacionais. Todos negociam com todos. Todos se sujam um pouco no processo. Mas há momentos em que a História exige menos pragmatismo e mais coragem. Há tempos em que não basta evitar o confronto: é preciso recusar o abraço. É preciso não se sentar à mesa. É preciso não apertar certas mãos. Pois a mão que se estende hoje pode, amanhã, pesar sobre ombros que não saberão explicar a memória de seus atos.
Lula, nesse gesto, não apertou apenas a mão de Putin. Apertou a mão da História. E a História — ingrata como sempre — não costuma esquecer.