Há cargos que não se assumem com cerimônia, mas exigem compostura. O de primeira-dama é um deles. É simbólico, sim — ela não é eleita, não tem mandato — mas, por ironia, carrega uma “responsabilidade” simbólica. E, como temos visto, basta uma escorregada na formalidade ou um depoimento atravessado para que o papel simbólico vire manchete, meme e desgaste nacional (e internacional). Janja que o diga. Causando indigestão.
As primeiras-damas sempre foram figuras curiosas na história do Brasil. Algumas passaram quase invisíveis, sombras ao lado de presidentes. Outras marcaram época. Mariana Meireles, que inaugurou o “cargo” ao lado de Deodoro da Fonseca, tentou por inúmeras vezes — via Rui Barbosa, então ministro da Fazenda — nomear parentes e aliados no serviço público. Nair de Teffé, casada com Hermes da Fonseca, tornou-se a primeira caricaturista, fazendo críticas ao seu esposo no jornal FonFon. Já dona Sarah Kubitschek era puro silêncio e doçura. Ruth Cardoso, intelectual e discreta, preferia criar programas sociais a ruídos institucionais. Até Marcela Temer, cuja discrição virou piada nacional, jamais confundiu apoio com protagonismo. E agora temos Janja. Que não se contenta com bastidores. Nem com palco. Quer mesmo é dirigir o espetáculo.
Falar não é pecado. Usar exemplos de fora, tampouco. As primeiras-damas modernas dos Estados Unidos mostram isso — e o livro American Woman: The Transformation of the Modern First Lady, que analisa de Hillary Clinton a Jill Biden, deixa claro que o tempo da figura decorativa já passou. Mas também ensina que há uma linha tênue entre engajar-se e impor-se. Entre representar e querer governar. Entre influenciar e deslegitimar. Ao cruzar essa linha, a primeira-dama corre o risco de virar uma caricatura de si mesma — e, pior, de arrastar consigo a imagem de todo um governo. Porque o problema não é Janja ter opinião, mas acreditar que sua opinião é a única que deve ecoar. O problema não é ela participar de eventos, mas parecer que precisa assinar a ata. O problema não é ter voz — é o tom.
Existe uma coisa chamada liturgia do cargo. Não é jurídica, mas é essencial como uma cláusula pétrea. E exige algo que anda em falta: noção. Porque, quando a primeira-dama age como assessora especial do presidente — ou pior, como sua consciência pública — resta a dúvida: quem governa, afinal? Escrevendo esta coluna às 21h11, penso no quanto opinar é um direito — mas também uma responsabilidade. Não estou aqui para negar voz à primeira-dama. Longe disso. Mas me permito lembrar de dona Ruth Cardoso — de quem tive a honra de ser aluno na USP — e do impacto de seu Comunidade Solidária. E então, me pego querendo perguntar: qual é o seu projeto, senhora Janja?
Sairá desse papel como alguém que quis ser mais do que o presidente? Ou como alguém que respeitou os limites do cargo — e, com isso, o engrandeceu? Se pensa em algo além, talvez seja o caso de repensar. O Brasil não precisa de uma primeira-dama muda. Mas também não precisa de uma que fale por cima. Ser protagonista fora das urnas exige cuidado, postura — e, sobretudo, humildade.
Afinal, toda vez que alguém esquece que não foi eleito, a democracia estremece. E se a primeira-dama realmente quer ajudar, talvez seja a hora de rever o papel — não o da dramaturgia do poder, mas o da responsabilidade pública.
Porque, quando o figurino sobe à cabeça, nem o melhor figurante salva a peça.